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Decisão reconhece transfobia institucional e condena Estado de São Paulo a indenizar mulher trans
A Justiça de São Paulo condenou o Estado a indenizar uma mulher negra transexual que foi vítima de transfobia ao buscar acesso ao tratamento de hormonização pelo Sistema Único de Saúde – SUS. A decisão, proferida pelo Juizado Especial Cível e Criminal de Jales, reconheceu que as expressões utilizadas pelo Estado configuraram discriminação institucional e violação de direitos humanos.
Segundo o processo, na contestação apresentada pelo Estado em ação anterior ajuizada para que ela obtivesse tratamento de hormonioterapia pelo SUS, a autora foi tratada ora como “autor”, ora como “autora”, além de ter seu nome masculino de registro destacado e sua condição de mulher trans classificada como “doença”.
Para o magistrado, a utilização de termos equivocadamente masculinos e a patologização da identidade de gênero da autora reproduzem estigmas que historicamente marginalizam mulheres trans, especialmente mulheres trans negras.
O juiz recorreu a um verso do poeta e dramaturgo William Shakespeare para ilustrar a violência simbólica de negar o nome de uma mulher trans. Ele destacou que chamá-la de “homem” não altera sua identidade, mas revela uma tentativa de atingi-la em sua dignidade – algo que o Direito deve repelir.
O magistrado reconheceu que não vivencia essa experiência, mas afirmou ter buscado entender, por meio de estudos, a dor causada quando a identidade e o nome de uma pessoa – que expressam sua própria existência – são negados.
“Se não consigo, como homem branco e heterossexual, dimensionar a dor do preconceito de uma mulher trans negra, preciso me apoiar na poesia, em que, mergulhando no humanismo, tento sair de mim e sentir a dor do outro. E, estudando este processo e várias autoras e autores (incluindo mulheres trans) que tratam do tema, pude sentir, ao menos em parte, o que é a dor de uma mulher trans sendo chamada de homem, de doente, com a subtração do próprio nome que expressa a existência”, afirmou.
“Escrevivência” e “jurisvivência”
O juiz também mencionou a filósofa Judith Butler para reforçar que a linguagem tem força para sustentar ou ferir corpos. Citou ainda a escritora Conceição Evaristo e sua “escrevivência”, para mostrar a importância de o Direito acolher narrativas historicamente silenciadas.
Ele trouxe, além disso, a ideia de “jurisvivência”, proposta pela juíza Flávia Martins de Carvalho, como um caminho para decisões mais sensíveis às experiências de grupos vulnerabilizados. Referiu-se também a estudos de especialistas como Rodrigo Borba, Frida Monteiro, Dedê Fatumma e Adilson Moreira, que analisam como a patologização, o estigma e as microagressões estruturam a transfobia.
O Estado argumentou que o erro decorreu da padronização de peças e do uso do nome de registro na inicial. O juízo, porém, entendeu que essas justificativas não afastam o dever de cuidado, especialmente diante da vulnerabilidade da população trans.
Ao reconhecer o dano moral e a discriminação institucional, a decisão ressalta que ser mulher trans não é doença e que o uso de linguagem patologizante reforça práticas historicamente violentas. Por isso, o Estado foi condenado a indenizar a autora.
O magistrado destacou ainda que, conforme o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, as decisões devem considerar a desigualdade estrutural que afeta pessoas trans.
Ele citou a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 4.275, que garante a retificação de nome sem exigências médicas, e afirmou que a igualdade de gênero impede que o Estado trate uma mulher trans como homem ou como doente. Esses parâmetros levaram à conclusão de que houve discriminação grave.
Por fim, fixou indenização de R$ 30 mil, conforme o pedido inicial, entendendo que o valor é adequado para compensar o sofrimento e para desestimular a repetição de condutas semelhantes por agentes públicos.
Processo 1006256-50.2025.8.26.0297
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